segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Recomeços

Fartinho da nostalgia deressiva. É tempo de reinvenção: por aqui

sábado, 1 de maio de 2010

Fome

A barriga está cheia, as pernas flácidas e os olhos entreabertos quase conseguem afogar a chama moribunda que ultimamente teima em brilhar, clandestina. Nos últimos tempos, uma fogueira mal apagada tem estalado e respirado o fogo que ele julgava extinto.

Ultimamente, ele tem sentido qualquer coisa a mexer debaixo da pele. Acorda-o de noite e aperta-lhe a garganta com dedos que, não sendo os dele, também o são.

Ultimamente, o punho cerra-se sozinho e os músculos que pensava terem desistido contraem e pulsam. Os dentes cerram e o sangue galopa mais rápido debaixo da mortalha de vida mal vivida que tem sido o seu disfarce.

Ultimamente, ele sente-se mal. Sente-se vivo. E viver dói. É a dor de um parto que não consegue evitar. Ele tenta afogar este animal que se contorce lá dentro, nas cavernas outroras escuras e secas.

Ultimamente, ele esquece-se do caminho de casa e deixa-se seguir até a gasolina acabar ou sol o surpreender numa estrada nacional qualquer.

Ultimamente ele luta. Ele que pensava que já não havia nada pelo que lutar.

Ultimamente, ele quase tem pena que as lágrimas tenham secado.

Ultimamente ele quer chorar. E matar e morrer. Porque, ultimamente, ele desconfia que, afinal, está vivo. E dói. E é bom.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Strip

O apelo da rua suja faz-se sentir. A Melânia, onde paravam os "drógados" como dizia a minha mãe, é uma memória triste há muito tempo enterrada; as oliveiras, palco das minhas aventuras de fim-de-semana, aquele pedaço de campo que animava os filhos desterrados do Alentejo e das Beiras, como eu e os meus amigos, está sepultado debaixo de mais alguns caixotes de cimento.

Vejo o meu irmão a passar de bicicleta, o meu pai a fumar o seu cigarro na janela, ausente no seu mundo secreto, o barulho dos padeiros a trabalhar e o calor doentio que transpira das paredes.

Os miúdos que conheci morreram. Uns, de facto, outros, juntaram-se ao exército da Melânia, porque há sempre uma Melânia algures, e outros ainda, cresceram para se tornar prematuramente velhos e amargos. Outros estão sozinhos, com sorrisos pintados.

E depois, aqui estou eu. Uma mistura de um pouco de todos eles, porque as suas memórias estão agarradas a mim, como um cheiro que se entranha nas unhas e nos cabelos e junto aos ossos.

Hoje apetecia despir-me do meu apartamento de luxo, do meu carro da moda, da roupa de marca e da vida marcada.

Hoje apetecia-me voltar áquele olival, voltar a passar pelos olhares esfomeados que paravam à porta da Melânia e que me abordavam dizendo que conheciam "muito bem" o meu pai. Apetecia-me voltar a correr atrás do meu irmão. Mas ele vai de bicicleta e eu não consigo apanhá-lo. E o meu pai olha lá de cima, da janela. E a cinza do cigarro cai. Cinzenta e cada vez mais fria.

Como eu.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Ar

Há dias em que tudo parece tão rápido e tão violento que me custa até respirar. Aquela sensação que nunca mais se torna familiar, como uma onda que nos agarra e sacode e espreme o ar dos pulmões, quase até à inconsciência, a sonolência que precede o abrir os pulmões e enchê-los de água e sal. Vou parar agora. Fechar os olhos e saborear o ar. Agora. Inspirar.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Portas e janelas

Preparo-me para deixar 2009. Ao preparar-me para abrir a porta a 2010, começo a perceber que este foi um ano de transições. O ano em que, pela primeira vez, comecei, realmente, a sentir-me envelhecer. O ano das primeiras indisfarçáveis rugas, o ano em que o corpo começou a reagir de forma diferente, o ano em que os mistérios do mundo começaram a parecer um pouco menos acessíveis.

É uma segunda adolescência, uma segunda passagem. À minha frente, vejo, embora distante, o fim; mas não estou assustado. Até lá, muitos novos inícios ainda se insinuam, prometendo outras vidas, como caixinhas dentro desta caixa. No fundo, também este corpo é uma caixa e acredito que ela se está a desfazer apenas para deixar-me sair. Bem-vinda nova adolescência. Eu vou a caminho.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Vidas perfeitas

Hoje dei por mim a pensar nas pessoas que têm vidas perfeitas. Elas existem, é verdade. Sempre pensei que fossem mitos da ordem do Nessie, do Yeti e de outros monstros imaginários, mas a verdade é que elas existem: pessoas que têm vidas organizadas, com bons empregos, filhos bonitos, saudáveis e educados, casas limpas e arrumadas; enfim, com vidas tão limpas e arrumadas como elas próprias. Pessoas bonitas, com peles imaculadas, que ficam bem nas fotos, que acordam já penteadas e com ar irritantemente fresco.

Há duas formas de lidar com esses monstros perfeitos: amá-los ou detestá-los. De certa forma, nunca, porém, pude deixar de os invejar. Para me consolar, penso que as dificuldades e os espalhanços vários que dei ao longo dos anos acrescentaram-me sabedoria, que as rugas me dão carácter e as cicatrizes, estilo. Mas a maior parte das vezes, sei que isto é conversa de treta na qual nem eu acredito.

Já amei pessoas perfeitas, mas as minhas cicatrizes e ar queimado não davam bem com as paredes imaculadamente brancas do seu caixão. Vidas perfeitas são tão vívidas e verdadeiras como os sonhos de um comatoso. Se é que eles sonham. A verdade é que quando olho para estas pessoas e suas vidas perfeitas, quero acreditar que alguém está, de facto, em coma: ou elas ou eu.